Catarina Montenegro
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Quando o espetáculo terminou e as luzes se apagaram, agradeci internamente pelos segundos de escuridão que se seguiram. Consegui limpar as lágrimas e respirar fundo para tentar esconder a emoção. Sei que nem todos são assim tão sensíveis e, confesso, ainda sinto um pouco de vergonha por essa sensibilidade tão intensa. Mas, na verdade, escondo aquilo que, para quem trabalha na arte, certamente enche o coração.

Sei que quem se dedica à arte tem como objetivo emocionar, fazer questionar, sensibilizar, agradar… São muitas as possibilidades, tudo depende da obra e da intenção de cada criação.

Acredito até que, muitas vezes, o objetivo pode não ser alcançado, pois a interpretação do público pode ser tão subjetiva que a mensagem chega de forma totalmente diferente daquela que se pretendia transmitir. Mas, seja como for, e à imagem das constelações, acredito que quando sentimos o impulso de assistir a um espetáculo, há algo ali para nós. Todas as interpretações, sensações e sensibilidades são válidas e únicas. E a minha perceção sobre este espetáculo foi, sem dúvida, única.

Confesso que fiquei curiosa para ler mais sobre esta peça, mas, no momento em que escrevo, ainda não o fiz. Queria registar a minha experiência antes de qualquer influência externa, descrever o que foi para mim este espetáculo sem antes conhecer a sua base de trabalho ou como é descrito oficialmente este HÁ QUALQUER COISA PRESTES A ACONTECER.

Já assisti a vários espetáculos de Vítor Hugo Pontes, da Nome Próprio, e adorei tudo o que vi dele. Por isso, quando soube que estaria no Teatro São João, no Porto, comprei logo dois bilhetes, sem sequer ler sobre o espetáculo, sem combinar ainda com quem ir, sem hesitar. Apenas decidi ir.

Sobre esta obra: HÁ QUALQUER COISA PRESTES A ACONTECER
Para mim, foi inebriante. Arrebatador de tão profundo, tão intenso, tão poético. Irregular e, ao mesmo tempo, perfeito.

Os bailarinos dançam completamente nus durante todo o espetáculo. Já assisti a outras peças em que a nudez está presente, mas nunca tinha visto uma em que fizesse tanto sentido como nesta.

Assisti ao espetáculo do 2º balcão, no 3º andar, o patamar mais elevado do teatro. Quando cheguei, pensei que talvez estivesse longe demais, mas a visão dos corpos daquele ponto da sala foi mágica. Não sei se mais perto teria o mesmo impacto. O que sei é que, em determinados momentos, senti como se aquela visão me transportasse para um transe interno – algo semelhante ao que acontece quando passamos tempo a observar as imagens em movimento de um caleidoscópio. Pelo menos, essa foi a minha sensação.

Este espetáculo projetou-me para diferentes tempos, épocas, acontecimentos e memórias. Algumas eram minhas, ou da minha geração. Outras, de tempos mais distantes, de realidades que reconheci por conhecimento histórico e cultural.

A meu ver, esta nudez fez-nos olhar para o ser humano sem o encaixar num tempo, num contexto específico, numa narrativa fechada. Permitiu-nos viajar para qualquer lugar, despidos de enquadramentos preconcebidos. E acredito que essa foi a razão por trás dessa escolha tão bem conseguida: remover subtilmente da mente do espetador o impulso de catalogar, abrindo espaço para uma compreensão mais ampla, entregue e pura.

Outro detalhe incrível foi a iluminação. Os jogos de sombras fortemente marcadas no chão, as ventoinhas refletidas que, em certos momentos, pareciam aerogeradores, remetendo à energia e criando uma metáfora entre os corpos despidos, suados e a força do vento. Tudo era energia pura. As luzes amareladas contrastando com sombras lilases criavam um efeito quase cinematográfico.

Este espetáculo fala da evolução dos tempos, dos momentos, das memórias. Fala da vida, da dor e da festa. E termina com leveza e humor.

Ver um espetáculo como este é uma experiência que ultrapassa o simples ato de assistir. É sentir, questionar, entregar-se. E, às vezes, é difícil descrever exatamente o que fica depois de sairmos do teatro - porque a arte transforma de formas inesperadas.

Por isso, se tiveres a oportunidade, permite-te vivê-la. Deixa-te surpreender, sem expectativas, sem filtros. Pode ser que algo ressoe em ti de uma forma que nem imaginavas.

A arte cura, transforma, faz-nos viver. Este espetáculo é pura arte! Ao mais alto nível.

©CatarinaMontenegro, 2024